Criolo: Convoque Seu Buda

A metrópole e suas várias contradições são as temáticas centrais do novo disco do rapper Criolo

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Convoque Seu Buda estava entre as produções mais esperadas do ano, sem dúvida. Para quem curte rap, este foi um ano memorável, inclusive. Entre tantas pérolas aguardadas, o terceiro disco de Criolo estava entre as principais. O disco já tem mais de 1 milhão e 300 mil visualizações (audições, talvez?) no YouTube, onde foi postado em 3 de novembro, data de seu lançamento oficial. Ao mesmo tempo o álbum foi disponibilizado para download no site oficial do artista.

Criolo é conhecido por não se “restringir” apenas ao rap em seus discos, transitando entre diversos outros estilos e gêneros musicais. Em Convoque Seu Buda não é diferente. Elementos que marcam a influência do maracatu, jongo, baião, rock, jazz, black music, reggea, samba, afrobeat, entre outros, estão presentes ao longo do trabalho. As referências, digamos, intelectuais, também chamam atenção com frequência no trabalho do Criolo. Nesse disco, aparecem Sabotage, Ferréz, Sartre, Nietzsche, Perrenoud, Black Alien, Piaget, Edi Rock, ufa, e ainda acho que esqueci de algum.

As letras, bem como a musicalidade, variam de temática, mas possuem marcas específicas. De cara, ouvindo o disco pela primeira vez, notei que o incômodo principal gira em torno das várias contradições da metrópole atual. A falta de moradia (“seu padeiro quer uma casa pra morar”), como uma das centrais, não aparece só de maneira explícita, mas também vai perpassando as faixas, quase de maneira pedagógica. Em Casa de Papelão, Criolo narra a vida nas ruas, fala sobre crack, especulação imobiliária e seu incômodo com a hipocrisia citadina torna-se latente em uma canção impecável. Com direito a um trecho de poema (cujo início já constava em Cerol, música antiga do cantor), os sopros dos arranjos dão a atmosfera dramática que a letra precisa pra ter seu efeito reflexivo, além de um toque meio afrobeat que faz lembrar o Nó Na Orelha.

Há quem diga que as críticas se destinam ao consumismo e à especulação imobiliária. Vou além. Ele fala sobre dinheiro, glamour e, de certa forma, pincela o que enxerga como hipocrisia. A inquietação diante da monetarização da vida (prédios vão se erguer/e o glamour vai colher/corpos na multidão) e de um estilo de vida que pode nos levar ao fim são claras na sequência que se monta em Esquiva da Esgrima (onde o maracatu dá as caras), Cartão de Visita e a já citada Casa de Papelão. O ar meio blues, meio jazz, meio anos 1980 geraram, ao menos pra mim, um tom de deboche em Cartão de Visita. O backing vocal impecável de Tulipa Ruiz, somado ao refrão que vai direto ao ponto, além da incorporação da frase que virou meme (Lázaro, alguém nos ajude a entender) mostram uma das músicas mais bem produzidas do disco. “O sistema exige perfis de TV”, diz Cartão de Visita, lembrando sempre que é também a estrutura que nos fala, a ela falamos e somos também falados.

Um pouco de afrobeat, um tanto de influência nordestina e uns pifes marcam Pegue Pra Ela, a canção que está entre as que mais me intriga no disco. A meu ver, uma união entre a anunciação de uma nova era que não se descola de uma análise (marxista) do meio social. Criolo fala sobre meios de produção e de como a lógica capitalista afeta a cultura. Há que o chame de adorniano, mas pra mim, ele faz aí um tratado sobre cultura de dar inveja a Tom Zé.

Ativismo(s) e a diferença entre a luta nas ruas (“eu que odeio tumulto/não acho insulto manifestação”) e a ilusão de que se vai mudar o mundo sem ação coletiva ou organização política (“mudar o mundo do sofá da sala/postar no insta”) também dão o tom. No clima pós junho de 2013, o cantor também fala sobre a tensão das manifestações que se espalharam pelo país, invocando uma certa espiritualidade, valores como a não-violência e a justiça, mas também alertando para as ações diretas (“mandaram avisar que vão torrar o Centro”) na faixa que dá título ao álbum.

Duas faixas não me chamaram atenção de cara: Plano de Voo e Pé de Breque. A primeira, um rap pesado que nos lembra dos primórdios de sua carreira, começa com frases simples e diretas, mas termina com uma letra sofisticada e bastante sensível. A participação do Síntese acrescenta uma firmeza à letra que, ao mesmo tempo, nos convoca a pensar (a vida é ritual/ parte no meio do mundo a sós num laudo intenso) e agir (desato o nó da trama/ enterro a discórdia no abraço/ rebato os peito de bronze / por trás das barras de aço).

Fermento pra Massa é mais uma daquelas narrativas urbanas que me fizeram pensar que, de fato, o disco fala sobre as vivências na cidade. Um sambinha cheio de cadência sobre um dia de greve dos transportes em São Paulo criam uma história cheia de reflexões e contestações que vão dos transportes, passam pela moradia, corrupção e a fome. A letra é muito bem construída, trata de quase todos os temas presentes no disco como um todo (moradia, cidade, transporte, ativismo social, política), embora o arranjo deixe a desejar. Outra marca do Criolo está em Fermento pra Massa, “farinha e cachaça” pode ser tanto a farinha que se usa pra fazer pão quanto a farinha que se compra na biqueira.

Confesso que não compreendi muito bem o motivo que levou à inclusão de Duas de Cinco. Cóccix-ência, do mesmo EP, ficou de fora. Mas o disco não poderia terminar melhor. O ponto de umbanda unido à voz de Juçara Marçal que, a meu ver, poderia se tornar patrimônio imaterial, são mais um chamado à espiritualidade. “Abra caminho tranquilo pra eu passar” pede Juçara, combinado à convocação de Buda, que abre o disco, mostram a intenção do artista em começar e terminar de maneira coerente. Cheia de frases de proteção e coragem, a faixa merece destaque.

Ah, e pra quem achou que era o Criolo na capa do disco, não é, não. É uma colagem feita pelo Denis Cisma e pelo Lucas Rampazzo a partir de uma imagem (entre tantas) liberada pelo Rijksmuseum, de Amsterdã. Com referências de vários tipos, a arte foi criada começando pela imagem de um oficial da corte da ilha de Java, de 1820, usando sarongue (esse vestidinho aí).

Este trabalho é um chamado à paz. Mas não a uma paz cínica, para poucos. A paz com justiça, para a qual Criolo nos chama, envolve justiça social e muita, muita luta. E algo bom precisa sair de cada um de nós. Essa é a mensagem de Convoque Seu Buda.

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Alguns destaques:

Cartão de Visita é um deboche completo. Ela me lembra, em algum ponto, Freguês da Meia Noite, em que Criolo utiliza um bolero romântico pra narrar uma história sobre drogas e prostituição, brincando com o clichê do gênero. Cartão de Visita não é apenas uma crítica ao consumo desenfreado na sociedade, mas é isso também. Não é apenas um deboche com o estilo de vida de determinadas classes, mas também é. E não é apenas um soul-jazz-meio-hip-hop-anos-80, mas também é.

Criolo fala sobre dinheiro, posse, glamour, hipocrisia, estilo de vida, monetarização da vida, empatia (ou a falta dela). E o deboche começa logo de cara; quando ouço os primeiros “acordes” (que são, na verdade, trechos de músicas) imagino pessoas trocando as estações de rádio numa limousine a caminho de uma festa numa esquina badalada do Rio ou de São Paulo. Em seguida, uma série de artigos de luxo é listada sem pudor, com uma voz trabalhada pra soar arrogante. Os artigos de luxo citados compõem o cenário de uma festa digna de cobertura de paparazzi e quem narra parece ser o promoter. E é aqui que reside, a meu ver, o segundo grande deboche da música e que me lembra muito Bourdieu. Ele fala em itens luxuosos e, no final, pede desculpas se não se apresentou “este é meu cartão, trabalho no buffet”. Ou seja, o arrogante organizador da festa de luxo é um trabalhador, exemplo que poderia ser usado pra ilustrar Gostos de classe e estilos de vida, de Pierre Bourdieu. O consumo de luxo e de marcas consideradas de classe A, para continuar distinguindo as classes sociais, precisa ser exclusivo. Nas palavras de Bourdieu: “Os gostos obedecem, assim, a uma espécie de lei de Engels generalizada: a cada nível de distribuição, o que é raro e constitui um luxo inacessível ou uma fantasia absurda para os ocupantes do nível anterior ou inferior, torna-se banal ou comum, e se encontra relegado à ordem do necessário, do evidente, pelo aparecimento de novos consumos, mais raros e, portanto, mais distintivos” (BOURDIEU, 1976).

Basicamente, o que vale frisar, nesse caso, é a construção do habitus de classe média (o narrador) que tende a se identificar com os valores das classes mais altas (o público da festa em questão).

E os artigos de luxo listados servem como forma de distinção não só para os que vão à festa organizada pelo cara que trabalha no buffet, mas também a ele próprio. Mas não é apenas da distinção via consumo que Criolo fala. “O sistema exige perfis de TV”, me faz lembrar é também a estrutura que nos fala, a ela falamos e somos também falados. Ora, os perfis de TV devem estar na festa e, para isso, o glamour e a presença de VIPs (“MC Lon tá portando VIP / Tássia tem um blog de fina estirpe”) é essencial.

No entanto, as críticas se dão também no âmbito individual, não apenas à estrutura. Quando Criolo diz “Acha que tá mamão, tá bom, tá uma festa / Menino no farol cê humilha e detesta”, é óbvio que fala sobre a estrutura que cria essa desigualdade, mas também chama atenção a um certo comportamento de classe, ao habitus dessa tal tribo descolada que se reúne pra discutir “cotas, copas e afins” mas não olha ao redor, porque “tá uma festa”. Outro grande deboche está também no refrão “parcela no cartão essa gente indigesta” é uma indireta-direta a esta classe média a quem Criolo direciona toda a ironia da música. A mesma classe que “parcela no cartão” todo o glamour do qual desfruta, enxerga uma classe bem mais próxima da sua como “essa gente indigesta” a ser alvo apenas de caridade – ou nem isso.

Ao final do refrão, um sampler dos Racionais me chamou atenção. “Nem tudo que brilha é relíquia nem joia”, trecho de “Artigo 157”, casa muito bem com Cartão de Visita, demonstrando as referências do músico.

Mais um deboche se segue quando o mesmo classe média arrogante diz que “a ignorância só cresce”, ou mesmo antes quando ele diz que quer “dar um clima cult” oferecendo “de brinde ímãs de geladeira com Sartre e Nietzche”. Criolo marca aqui um ponto central em suas discussões sociais, sempre lembrando que, por mais bem intencionados que sejam os “acostumados com sucrilhos no prato”, há sempre um lugar de classe bem demarcado.

Pegue pra Ela começa com baixos bem marcados, percussão leve. Os pifes marcam o que se anuncia em seguida. Um pouco de afrobeat, um tanto de influência nordestina, remetendo a um xaxado latente, lembrando um pouco o baião. A canção Pegue Pra Ela que está entre as que mais me intriga no disco. A meu ver, ela une com maestria a anunciação de uma nova era e uma análise crítica intensa do meio social. Criolo fala sobre meios de produção e de como a lógica capitalista afeta a cultura. Há que o chame de adorniano, mas pra mim, ele faz aí um tratado sobre cultura bastante elaborado e completo.

Já diria Stuart Hall: tenho quase tanta dificuldade com ‘popular’ quanto tenho com ‘cultura’, quando colocamos os dois termos juntos, as dificuldades podem se tornar tremendas. É disso que se trata Pegue Pra Ela. Por um lado, para muitos marxistas, a luta de classes por si só explicaria todo e qualquer processo, reduzindo a cultura a um simples reflexo da base econômica, incapaz de influenciar nas dinâmicas social, econômica e política. Do outro lado estão os chamados culturalistas, para os quais a cultura é que seria determinante. Segundo esta visão, muitos problemas contemporâneos resultantes de diversos fatores (históricos, culturais, sociais, econômicos etc.) se justificam somente pela cultura. Ambas as concepções apresentam problemas. Uma por admitir que a cultura estaria acima das determinações materiais da sociedade e, portanto, em um estágio superior, de “elevação” do ser humano; a outra por enxergar a cultura como campo secundário da vida. Criolo parece não se prender a nenhuma dessas concepções, mas sim se aproximar da perspectiva dos estudos culturais, na qual a noção de que a cultura fala mais sobre as disputas e os processos de transformação para os quais a cultura é ambiente fértil.

Acredito que esta música é uma análise sobre cultura porque ela dá conta de um universo de complexidades que estão em jogo quando se discute cultura. Digo isso porque ele de cara já enquadra sua análise na perspectiva dialética marxista “Toda indústria tem no comércio / Seu ponto de reprodução / Então, se pra cada ponto, processo / E cada processo uma ação”. Ele reconhece que tudo é processo e que cada processo gera uma ação (e ao mesmo tempo é uma ação), o que pra mim remete, em certo sentido, a uma perspectiva de resistência mesmo. Criolo está resumindo o modo de produção capitalista e, ao mesmo tempo, apontando um horizonte dialético em que reforça que “pra cada ponto, processo e cada processo uma ação”. Logo de cara, ele anuncia “essa nossa canção” e pede para que “conte pra ela dessa nova estação”, o que me fez pensar muito nas iniciativas culturais independentes e nas novidades que esses coletivos de arte significam. Como militante, entendo a “nossa canção” como uma forma de indicar uma ação coletiva e a “nova estação” como realmente uma nova forma de se produzir cultura ou mesmo de resistir à cultura como espetáculo/comércio.

Em seguida, Criolo utiliza a mesma linha de raciocínio pra falar sobre cultura “Toda cultura vira comércio / É o ponto de degradação / Então, se pra cada ponto, processo / E cada processo uma ação”. Nesse sentido, ele está dizendo, pra mim, que a cultura se adapta ao modo de produção capitalista, sem dúvida. Mas reconhecendo, mais uma vez, o processo e a ação. Enxergo que ele questiona sim a possibilidade de “degradação” da cultura quando esta vira comércio, no entanto, ele repete que lá está o processo e a ação, seja pra resistirmos a esta degradação, seja pra denunciarmos, seja pra escolhermos degradar (conter) pra depois resistir.

Por isso nem de longe enxergo como uma análise adorniana, já que outra estrofe que se repete é “Pra cada toco dentro do eixo / Quebra queixo dessa questão”, que pra mim remete a quem decide disputar (ideológica e esteticamente) a cultura de massas, ou ser o “toco dentro do eixo” que “quebra” o que está até então estabelecida. E “Pra cada louco fora do eixo / Quebra queixo dessa questão”, continuação da mesma estrofe, a meu ver é um embaralhamento do sentido de “fora do eixo”. Ele ao mesmo tempo está falando de quem decidiu resistir à indústria cultural ao invés de disputá-la e de como isso pode ser ambíguo, já que remete ao próprio Fora do Eixo (o coletivo). É complexo, o artista está o tempo todo reconhecendo isso, falando sobre todas as contradições, ambiguidades e complexidades de se fazer as duas coisas – disputar “por dentro” e “por fora”.

Além disso, ao mesmo tempo em que o rapper localiza a cultura dentro do espectro da produção capitalista, quando ele diz que “Essa nave já vai partir / E carrega uma multidão”, penso que ele fala sobre uma certa insatisfação coletiva que diz respeito não somente ao sistema econômico, mas também a tudo que está ao nosso entorno: a cidade (temática central do disco), a cultura, o trabalho, o consumo, o espetáculo (que prioriza sempre a noção de que na cultura há a eterna divisão entre espectadores e produtores). Pra mim, a nave é a novidade, a anunciação, como se as pessoas estivessem finalmente se organizando em multidões insatisfeitas e que querem “convocar seu buda” pra transformar o mundo através também da cultura. É claro que, novamente, ele aponta que existe o tal “eixo” em que ou se está dentro, ou se está fora, mas o horizonte da resistência se apresenta, enfim.

Em relação à questão estética, não acredito que seja por acaso a influência nordestina na produção de Pegue Pra Ela. Até o sotaque do cantor muda pra entoar a letra com mais vigor, o R de “partir”, o E de “questão” (que vira quéstão) e o O de “reprodução” (que vira répródução), entre outros detalhes, que também fazem referência a outra música do disco, Esquiva da Esgrima (“é que eu sou fi de cearense, a caatinga castiga e meu povo tem sangue quente”). Creio que essa quantidade de referências ao nordeste não diz respeito apenas às origens de Criolo, mas também ao seu desejo de mostrar a diversidade cultural da região e trazer isso como um elemento constitutivo da cidade grande atual. A forte presença nordestina, principalmente em São Paulo, precisa ser valorizada também pela bagagem cultural do povo migrante, e não apenas pelo suor de seus rostos. Criolo ajuda a ressignificar tudo isso nesta obra prima chamada Pegue Pra Ela.

Este texto é uma versão mais longa do que foi inicialmente publicado no Outra Página.

As telas

Num mundo de tantas coisas possíveis, eu fico sempre confusa. Essa coisa mesmo da gente poder falar com as pessoas a hora que quiser. Quando é demais? Quando é de menos? Será que tem uma quantidade certa de afeto que a gente pode dar sem assustar? Sei lá, a coisa da conversa mesmo. Porque se pode falar a qualquer momento, por que não falar? Né? Tipo, por que ter de ficar controlando ou contendo ou administrando? Tem a coisa sexual também. Quando pode? Sendo mulher essa pergunta tem um sentido um tiquinho diferente, inclusive.

E eu pergunto também: quando será que a pessoa sai dali da janelinha e o que ela fala sai dos balõezinhos mediados por telas? Será que sai? É tanta possibilidade que eu fico realmente confusa.

Porque se a gente pode falar qualquer hora, por que então a pessoa não fala também? Tipo, a iniciativa de começar a conversa. “Qualquer um pode puxar papo, mas por que sou sempre eu?”, tem essa pergunta também. E tem as regras as pessoas criam, algo como “tem de esperar ele falar, mas se demorar muito e você estiver com saudade, aí pode”. Mas às vezes nem demora esse muito, e a gente já tá com saudade. Aí como administra?

E é tudo tão substituível, né? Existe um posto que a gente às vezes ocupa, de pessoa com quem a pessoa mais fala, talvez. E de pessoa com quem a pessoa sente vontade de puxar papo e também segura. Ou puxa sempre, quando tem vontade. Mas aí tem a vida, tem o corre corre, o trabalho, a família. Não tem? Todo mundo tem. E aí às vezes vem outra pessoa praquele “posto”.

E essa coisa de morar longe atrapalha tanto, né? Nossa, atrapalha demais. Porque se não fosse isso os balõezinhos poderiam virar ondas sonoras bem próximas umas das outras. E as janelinhas seriam uma mesa de bar ou uma rua ou um sofá ou uma cama. Mas às vezes tem uma serra separando, uma Dutra, uma BR. Às vezes tem um oceano inteiro.

Porque tem o afeto e tem um monte de confusão em torno dele. Parece que isso aqui deixa tudo mais móvel, mais fluido. Daí a gente não sabe se o que a pessoa diz é de verdade (mesmo que seja verdade só naquela hora, poxa) ou se ela tá mandando o famoso “papinho”. Se era verdade quando ela disse e depois mudou, ou se ela nem se lembra que disse. Imagina? Loucura.

E também tem gente cruel, né? Aquelas pessoas que alimentam um tanto de coisa e depois não era nada. Era só porque elas queriam alguém ali pra fazer um carinho na autoestima delas. Ou porque elas tinham tempo sobrando, um tico de tédio e um tanto de “não me importo”.

Nossa, mas tem tanta gente legal também. E tem tanto amor possível. Ou não necessariamente amor, mas aquela coisa de “uau, que delícia” também tem aqui. E é legal, né? Eu acho. E tem afeto, tem bastante afeto. A pessoa às vezes só sente isso, inclusive. Ou naquele momento é só aquilo, aí quando o balãozinho vira som, tcharã, tem outras coisas. Que podem acabar quando vocês pagarem a conta (do que quer que seja). Mas também pode acabar semana que vem. Ou pode não acabar, né? Quem sabe?

Eu sei de tudo isso, embora boa parte nem tenha acontecido comigo. Mas eu continuo sempre confusa. E sempre perguntando: será que eu posso falar? Será que acabou só o assunto? Será que acabou o interesse?

O balãozinho vai ser sempre balãozinho com umas telas mediando?

Artigo: Cidades desiguais e coreografias de resistência

Este artigo está disponível, em versão resumida, nos Anais do X Encontro de Estudos Multidisciplinares em Cultura (ENECULT) e foi apresentado durante o Encontro. As alterações foram pequenas, fiz para adequação ao formato do Enecult, mas o trabalho completo você pode baixar aqui.

Resumo: O objetivo deste trabalho é reunir reflexões sobre os processos de espetacularização dos grandes centros urbanos brasileiros, bem como as consequências e resistências em torno destes processos. Partindo das transformações urbanísticas – que também são frutos de escolhas políticas – sofridas pelo Rio de Janeiro ao longo dos séculos, destacamos o aumento da desigualdade e as tentativas de expulsão das populações de baixa renda das áreas centrais como principais consequências, mas não as únicas. Desdobrando esse movimento, observamos a repressão ao lazer dessas classes, bem como as barreiras impostas à construção de outras formas de vivência dos espaços urbanos.

Utilizamos como exemplos dessas consequências a proibição dos bailes funk no Rio de Janeiro durante a década de 1990 e a recente repressão aos chamados rolezinhos. Entendendo a semelhança entre as origens de classe dos participantes dos rolezinhos e dos principais produtores e consumidores de funk na década de 1990, traçamos um paralelo entre os dois acontecimentos. A reflexão sobre as vivências na cidade e a democratização do espaço urbano permeiam os debates presentes neste ensaio. Apontamos também dois exemplos de resistência a esse processo: as Rodas de Funk e o Sarau Apafunk, ambos organizados pela Associação dos Profissionais e Amigos do Funk (Apafunk) no Rio de Janeiro.

Para ler o artigo completo clique aqui.

Sobre privilégios e male tears

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Vou falar sobre um assunto incômodo pra maioria das mulheres, mas que gera uma série de ataques de homens (por mais apoiadores do feminismo que sejam). Pequena história: uma mulher aponta um entendimento machista num discurso, seja ele qual for – texto, foto, vídeo, música, fala pública ou privada, enfim -, e um homem reverte o questionamento deslegitimando o argumento dela. Muitas vezes, além de tudo, o homem insinua que a machista é a mulher e insiste em silenciar a crítica feita, mesmo ela sendo mulher e ele homem. Pois é. Acho que não conheço nenhuma feminista que nunca tenha passado por isso. Então, resolvi pensar sobre.

É muito importante que os homens sejam aliados na luta contra o machismo, a desigualdade de gênero, as violências. Gosto quando amigos meus interpelam outros e questionam o machismo introjetado, quando postam nas redes sociais vídeos machistas para denunciar, quando relatam episódios machistas no cotidiano e mostram-se indignados. É importante, é legal, eu incentivo, e a maioria das feministas faz o mesmo. No entanto, isso não coloca o homem no lugar do oprimido. Não é ele – por mais que relate, que se indigne, que se revolte – quem sofre na pele os encoxamentos no busão, as agressões no trabalho, os silenciamentos em relacionamentos, a violência simbólica midiátia, os julgamentos. Essa condição, embora martelada, precisa ser apontada. E por que? Porque ela é essencial para definir o protagonismo, em toda a sua plenitude. Desenvolvo, seguindo o mote do silenciamento.

Não é, em hipótese alguma, papel do homem dizer como as mulheres devem lutar por direitos. Não é o homem quem deve dizer como devem as feministas se comportar. Não é ele quem deve definir, teórica e praticamente, as linhas a serem perseguidas pelos coletivos de mulheres. Também nos parece óbvio, mas a retirada do lugar de autoridade dos homens é um tijolo pesado a se carregar nessa construção. Por mais apoiadores que sejam, não aceitam que não podem dar a diretriz. Perder privilégios, principalmente o da fala, é difícil de engolir. E argumentam contra isso das mais diversas formas, começando pela ideia de que os movimentos precisam aprender a dialogar, passando pelo ‘sou humanista’ e terminando em ‘vocês são radicais extremistas’.

Os homens são cerca de 90% na política institucional. Isso quer dizer que eles decidem o que faremos todos e todas, homens e mulheres, em todos os âmbitos da nossa vida. Eles legislam, aplicam as leis, as fiscalizam e direcionam. Os homens acusam, defendem e dão veredito. Os homens escrevem, propõem e votam. E as mulheres? A elas só resta falar, na pequena parte do tempo a elas destinado. E também na maior parte do tempo são silenciadas, seja pela avalanche de falas masculinas que se seguem, seja pelo machismo institucionalizado.

Os homens são maioria na militância política. Eles se organizam em coletivos dos mais diversos em que mulheres parecem ser bem vindas, mas só se não tiverem filho pra criar (não tem creche e nem quem cuide pra que elas participem) e se puderem lidar com todo tipo de discurso machista, declarado ou enrustido. No movimento estudantil, por exemplo, elas estão sempre presentes, mas quem são os coordenadores de instâncias representativas? Somos também esmagadora minoria.

Os homens também são os donos do capital. São maioria nos cargos de chefia de empresas multinacionais, grandes, médias e pequenas. São eles quem decidem pra onde circula a grana. E as mulheres? Bem, elas cavam aqui e ali uma vaguinha de gerente executiva, e seguem ganhando menos do que homens que ocupam os mesmos cargos.

Feitos estes apontamentos, para além dos relatos diários das violências sofridas, pergunto: quem deve, portanto, protagonizar, dar diretrizes, teorizar, praticar, decidir, enfim, sobre o feminismo? Quem tem direitos sobre este espaço que é praticamente o único em que somos ouvidas, levadas em conta, tratadas com igualdade? A resposta é uma só: as mulheres. Por mais que se tente, o homem não consegue se desamarrar da condição privilegiada. Sim, há um grupo oprimido, entre muitos, a que me refiro aqui, e são as mulheres. Para que esse grupo seja oprimido, um outro possui privilégios, os homens. Quando digo “os homens”, aqui, não falo de pessoas específicas (embora elas se enquadrem, obviamente, afinal elas existem). Falo da instituição patriarcal em si, que confere aos homens privilégios e às mulheres opressões. Portanto, não há igualdade alguma. E em se partindo de pontos desiguais, não há possibilidade de equalizar as vozes dentro da desigualdade. Dessa forma, cabe aos homens aceitarem seu lugar de privilégio e denunciarem este lugar.

Onde quero chegar? Quero dizer que entendo os esforços de alguns homens que enxergam no feminismo uma forma também de libertação própria, afinal, como disse Simone de Beauvoir, “querer-se livre é também querer livres os outros”. E sim, o feminismo também liberta os homens. Mas não, ele não é sobre os homens. Não são os homens, portanto, que devem apontar os rumos do feminismo, questionar as decisões femininas e, acima de tudo, protagonizar a luta. Não são os homens que devem julgar o que é feminismo e o que não é. A autocrítica dos homens, portanto, deve prevalecer.

Este lugar cômodo ocupado por eles deve ser questionado sempre que possível. E quando não aceitarem, como na maioria das vezes, ter seu lugar de autoridade colocado em xeque, isso deve ser apontado. D

 

Mais sobre isso, texto da Lola, antigo, mas muito bom:

http://escrevalolaescreva.blogspot.com.br/2011/11/homexplicanismo-merecimento-e-pedestais.html?m=1

VALESCA, A BREGUICE E O PODER

Uma crítica – em forma de ensaio – de Beijinho no Ombro

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Não me sinto inteiramente segura ainda para produzir uma crítica estética, musical e de diversas outras naturezas sobre o novo clipe de Valesca Popozuda, Beijinho no Ombro. Os Popofãs esperaram ansiosos para o lançamento do videoclipe que, segundo o site Ego, custou cerca de 400 mil reais. Vou tentar aqui, em forma de ensaio, jogar alguns questionamentos para reflexão.

Valesca, como tem-se por notório, atravessa uma nova fase na carreira. Agora solo, deixou sua irmã no comando da Gaiola das Popozudas e resolveu trilhar seu próprio caminho. Beijinho no Ombro parece ser, então, o primeiro passo que coroa essa nova fase. Há quem diga que está mais “comportada”, há quem diga que está seguindo os passos de Anitta, considerada como pasteurizada, há quem diga que se inspirou demais na diva pop internacional Beyoncé. Mas o que de fato me incomoda são as críticas claramente classistas e autoritárias.

Quando foi lançado o teaser de Beijinho no Ombro, em novembro, a revista Veja publicou uma crítica intitulada “Existe o brega, o muito brega e o novo clipe de Valesca Popozuda”. O argumento não impressiona, tendo vindo de onde veio?. O que decepciona é ver esse mesmíssimo argumento saindo das bocas (ou dos teclados) de quem se diz super progressista e democrático.

O clipe 

ImageOs produtores escolheram um castelo, uma poltrona real, um manto e cetros como componentes centrais da estética de Beijinho no Ombro. O objetivo era dar à Valesca uma posição de rainha do funk, lugar esse que a mídia corporativa tenta de todas as formas oferecer à Anitta (durante um programa do Faustão, o apresentador repetiu mais de 20 vezes, contadas por mim, a frase “Anitta, a rainha do funk”). Vale frisar, também, que essa tensão entre Anitta e Valesca, ao que parece, é muito mais forjada por essa mídia do que pelo próprio mundo funk.

Contracenar com animais como o tigre e a águia dão um ar poderoso à cantora. Um lugar de dominação do ambiente ao redor, e não falo apenas do ambiente em que o clipe se passa, mas da cena funk como um todo. O clipe, chuto dizer, é uma forma de dizer que Valesca, ainda mais poderosa e empoderada, tem o total controle do que diz e faz.

A iluminação baixa do início, a mistura do fúnebre com toques de batidas clássicas do funk e do tamborzão, compõem um tom obscuro que é rompido pela chegada de Valesca. Os figurinos dos dançarinos todos opacos e os tons de vermelho exibidos pela funkeira a colocam numa outra posição em relação a eles. A coreografia é simples e menos importante que letra da música, pelo menos na minha impressão. O que chama atenção, então, é o lugar que Valesca ocupa desde o início do vídeo: o de rainha.

Mas, Mariana, e o feminismo?

Essa é a pergunta que muitos me fizeram e fazem. Alguns, com uma genuína dúvida. Outros, em tom retórico. Digo isso porque existe uma esquerda academicista (da qual não faço parte) que se apega com unhas e dentes a um autoritarismo intelectual grosseiro. Esses, então, se usam do “gostaria de entender”, mas não conseguem esconder sua indignação com a hipótese de que grupos subalternizados possam produzir sua própria pauta. E quando aceitam essa premissa, transformam essa pauta em rebaixada e inferior (vide o quanto demoraram a aceitar que o Rap da Felicidade pudesse ser música de protesto). Nesses termos e com essa arrogância, não pretendo iniciar ou manter qualquer debate.

ImageReafirmo aqui o que já disse diversas vezes: o discurso feminista não é inerente ao funk feminino (ou produzido por mulheres, como queiram chamar). É um discurso conquistado e conquistador, pouco legitimado, mas muito legitimador. Nesse sentido, é importante frisar que a pauta do empoderamento é essencial para as mulheres que possuem a mesma origem do funk. Faveladas, alheias ao consumo do qual disfruta a classe média (fator máximo de inclusão para a sociedade atual) e pouco escolarizadas, essas mulheres precisam de quem lhes empoderem e, acima de tudo, construir seu próprio empoderamento.

Não digo, aqui, que ele já não existe. Muitas mulheres de favela hoje são arrimo de família, enfrentam tripla jornada e são plenamente conscientes do machismo. O que se vê, então, é uma possibilidade de outras formas de empoderamento, através do discurso dos corpos livres, da liberdade sexual e da posição de poder que, ao longo dos séculos, só era possível para os homens. Não, essa pauta não representa uma “ruptura concreta e radical com o sistema capitalista”. Ela representa transformações possíveis em um universo em que dar de comer aos filhos é prioridade, numa sociedade em que mães solteiras ainda são alvo de preconceito.

É claro que a “sororidade”, conceito, inclusive, bastante polêmico e não-consensual entre as feministas (acadêmicas ou não) não está presente nessa e em muitas outras letras da Valesca. E aí, o feminismo acadêmico, embora tenha razão em muitas de suas críticas, peca por sua visão classista e pouco inclusiva. A sororidade é ausente nas letras de músicas, mas não para um grupo social como um todo. A análise semiótica da letra de Beijinho no Ombro nos mostraria, de fato, um incentivo à competitividade feminina, elemento tão desmobilizante, como aponta Naomi Wolf em O Mito da Beleza. Mas o que o essa ausência não pode nos fazer ignorar é a capacidade de empoderamento presente tanto no conceito estético adotado pelos produtores, como no contexto em que Valesca se insere.

Outro elemento importante, no qual não pretendo me aprofundar, é a exigência da humildade. Tenho percebido que, assim como no rap, o funk tem demonstrado cada vez mais que não quer para si o lugar da humildade. Quer ter os mesmos direitos, o mesmo acesso ao consumo e ocupar os mesmos espaços da elite e da classe média, seja via consumo, via política ou disputa pelo direito à cidade.

Critério estético: quando grupos distintos se mostram de braços dados

ImageQue critérios estéticos definem como “brega” a linguagem e o argumento escolhidos para formular o clipe e a música de Valesca? Parece claro: os mesmos critérios que colocam a elite e a classe média em seu lugar de poder, como divos soberanos da escolha do que se pode ou não se pode gostar. Suponhamos que esse mesmo clipe fosse encenado, por exemplo, por Lady Gaga? A lógica seria outra, não? Dói na elite e na classe média que essas pessoas ocupem os mesmos espaços que elas, que utilizem as mesmas ferramentas, que produzam seu próprio discurso.

Como há muito não via, pude notar que, um grupo que costuma divergir sempre das opiniões publicadas na Veja, dessa vez estava de braços dados com a revista. O argumento da “breguice” me parece bastante aglutinador, nesse caso. A “falta de classe” inerente à Valesca e outras funkeiras a impede, segundo essas pessoas, que ela produza um videoclipe com essa linguagem, que use um figurino que poderia ser utilizado por Beyoncé, e que se mostre empoderada, e não no seu lugar humilde e subalterno.

 

Texto: Mariana Gomes

Revisão e bons pitacos: Raquel Moreira-Meade

Longe de nós

E se um dia a gente se entendesse? Se um dia a gente conversasse, com palavras, sem dizer o quanto discordamos? E se a gente de fato não discordasse? Sem palavras, nos entendemos. Os carinhos, os olhos se encontram, as mãos se encaixam, os sorrisos se cruzam em beijos e suspiros.

Beijar seu corpo é como velejar. Há uma brisa que refresca, mas tudo continua quente. Sentir seu suor em mim é como mergulhar, então, no mar mais azul. Azul passa a ser a cor mais quente. Seu tórax nu, seus olhos de ressaca, nada parece impor a nós as barreiras que somos.

E é quando você diz não que eu saio sem rumo. Os nãos às vezes são gestos. Não estou disposto, então, a ultrapassar suas barreiras de cicatrizes enormes, quase cirúrgicas, ao redor do peito. Então repenso, o que estaria fazendo aqui? Não sei. Só sei que estou, mas amanhã já não sei.

E me pergunto: por que precisa ser tão difícil? “É o que carrego, que me atravessa”, você responde de cabeça baixa. Levanto seu queixo com o polegar nos seus lábios. Vejo uma lágrima cair em seu colo nesse milésimo de segundo. Te olho tentando te fazer sorrir. Você até esboça um sorriso lateral, sua especialidade, mas cai no choro de novo.

“Lembra da primeira vez que você tocou meus lábios?”, pergunta. Não me recordava. “Foi quando te disse pela primeira vez: foge, ainda dá tempo. E você disse que queria ficar”, disse antes de cobrir o rosto com as palmas das duas mãos. “Antes tivesse fugido eu”, completou já soluçando.

Me lembrei, então, da cena. Sigo sem nenhuma vontade de fugir. Não fossem todos os desenganos, as decepções, os tropeços nas palavras. Não fossem os sorrisos, os abraços, as mãos que não se soltam. Não fossem as dores, os sabores. Não fosse a falta do delírio verbal, não éramos nós.

Esperei você dormir e fugi. Sem nenhuma vontade, fugi. Pra longe de nós.

Nanquim

Eu poderia estar até agora sentada naquelas escadas. De mãos dadas, olhar o mundo pode até ser bom. “Eu gosto quando você sorri” era a frase mais bonita a se ouvir, então. E você disse isso por mais de uma vez, já que com você, de fato, os sorrisos se multiplicam. É pra ser simples e leve, eu sei. Mas não se faz isso de um dia para o outro com um coração em reconstrução. O medo de novos hematomas é maior que a capacidade de ser leve. Além do mais, o que é ser leve pra quem vive armado? É como dizer a um favelado que a vida não é dura, como diria Criolo.

A vida pede mais, sempre. Inquieta, não consigo oferecer o que poderia. Você pede leveza a quem carrega consigo o peso de um mundo de sonhos. E você pede mais, também. Finge não querer tanto, porque o que você quer, não é o mesmo que oferece. Finge não pedir tanto, mas pede um pouco que é difícil. O que você quer é demais, é pesado, embora ache que não é. E o que eu quero? Não sei. Pensei em descobrirmos juntos nesse mar de incertezas que é a vida. Mas você já sabia de antemão. E não quis dizer. Não disse. Não dissemos.

Tínhamos, então, um ao outro por esse tempo. Era pouco, mas como era muito. Era pouco, mas era justo, cabia na gente e já dava pra sentir saudade das testas coladas e dos olhos sorridentes. Era pouco, mas era muito, porque os significados nem sempre são voluntários. Era pouco, mas era muito, porque não sabíamos quanto era. Eu não sabia. Você, talvez. Mas não disse.

Já eu, disse coisas demais, fiz perguntas sem interrogação. Deixei poucas marcas, quase nenhuma. Mas você. Você eu desenhei no corpo. Suas mãos e seus olhos, como tatuagem, estão aqui. Desenhei com nanquim o contorno de você em mim. Agora não consigo lavar.

no mar revolto

“O mundo nos torna despreocupados”, falou a si mesma enquanto olhava a tela, ansiosa, esperando o site de notícias abrir. Há quem diga o contrário, que crescemos e as preocupações aumentam. Mas ela fala de sentimentos. Quando crianças, somos induzidos a refletir sobre as atitudes que magoam o amiguinho. Nos fazem pedir desculpas, dizer obrigada, de nada, olá, até logo. Mas crescemos e vamos cuidar do que nos faz sobreviver (e não apenas do que nos faz viver). Então, nos deparamos com todo tipo de sentir, circulando ao nosso redor, rondando nossas cabeças como fantasmas camaradas.

Às vezes tropeçamos no sentir. Às vezes ele é que tropeça na gente. E ela tropeça sempre, caminha poucos passos, tropeça de novo. Mas pouco importa, porque de toda forma o sentir a derruba. De qualquer forma a faz cair. Repete tantos erros. Repete todos os erros, sem exceção. Fala com os que vivem de fato, que se entregam e não os que deixam que acreditem por si. Sem juízo de valor, convive com os que deixam a faca cravar a carne até sangrar.

É claro que o mundo nos torna despreocupados. Os calos apertam, as cicatrizes não somem. “Estão certos os que preferem a si próprios”, diz. Mas não consegue seguir o que vira e mexe repete pra si “my feelings are more important than yours”. Levanta, anda, e pensa “é a última vez”. Ledo engano. Na mente, cria mantras que jamais seguiu. No mar revolto, se agarra nos botes em que jamais subiu, segura nas boias vazias, aperta as mãos que a estendem e tenta se salvar.

Dos sonhos, acorda, sorri, e repete: já sobrevivi a tempestades piores.

O recado da elite

Quando decidiram chamar de arrastão a insurgência de garotos que circulavam pelas praias porque não tinham como voltar pra casa após seu divertimento na noite, nos anos 90: botaram na conta do funk. Quando denunciaram na imprensa a “feira de drogas a céu aberto”, diziam que era na porta dos bailes de favela: botaram na conta do funk. Quando morreu de Tim Lopes: botaram na conta do funk. O fantasma é sempre o funk, nunca é a falta de transporte público, a guerra aos pobres causada pelo proibicionismo que afeta a política de drogas, a violência urbana sustentada pelo Estado. Nunca é.

Agora, grupos de jovens decidem ocupar mais espaços e, claro, botaram na conta do funk. Acontece que ninguém questiona que esses garotos são impedidos de circular pela cidade como indivíduos. O “rolezinho” não existe por acaso. Esses meninos carregam consigo o estigma do criminoso em potencial. Quando a senhora comedora de pizza de picanha com catupiry diz que “tem de proibir esse tipo de maloqueiro de entrar num lugar como este” está dando um recado claro: aqui não é lugar pra vocês, pobres, pretos, favelados, funkeiros. E quando a matéria* que reportou o caso decide começar se referindo ao funk como fantasma, também está dando um recado claro: botamos na conta do funk. A elite diz que a cidade é dela. Não se pode botar na conta da falta do direito à cidade. A culpa é dos maloqueiros-ouvidores-de-funk-ostentação.

Vendo algumas pessoas falarem sobre isso, notei que há um incômodo sério em relação ao funk ostentação, inclusive no discurso daqueles que se dizem democráticos e livres de preconceito. Alguns, inclusive, chamam de “consumismo doentio”. Ora, sintomática hipocrisia essa que nos faz pensar que pobres, pretos e favelados, incentivados ao consumo há pelo menos uma década, não devem consumir de forma exagerada. Sintomática hipocrisia que diz que favelado não pode ter TV de LED. Sintomática hipocrisia que diz que o funk ostentação é que levou esses jovens ao consumo. Me assusta a cegueira pra um todo social que praticamente nos obriga a consumir o tempo todo (vide obsolescência programada), mas quando a favela quer comprar, é supérfluo, é culpa do funk ostentação.

A polêmica entre o conformismo do consumo e a resistência atribuída a essa juventude é saudável, deve ser debatida. Mas não nesses marcos excludentes. Não se trata aqui de defender o consumo como um valor revolucionário ou mesmo importante na prática. Mas pensar sobre o consumo nos ajuda a pensar sobre o estágio atual do sistema capitalista, principalmente em relação à juventude. Por que o consumo dos chamados itens de luxo por parte desses jovens favelados incomoda tanto? Não seria, no limite, o mesmo argumento de quem defende que não se pode comprar Danoninho com Bolsa Família?

O funk é contraditório, a cultura popular é contraditória. Entender as nuances que compõem e afetam a lógica do funk ostentação, nos ajuda a pensar o impacto do consumo (e do consumismo) na sociedade em que vivemos. Só acredito que isso nunca pode ser feito nos marcos do elitismo acadêmico e do ódio de classe. Relativizar é preciso, porque o fantasma é sempre o funk, o preto, o favelado. O fantasma nunca é a elite e seus ditames.

*http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2013/12/1386132-mesmo-sem-crimes-rolezinho-causou-panico-e-levou-policia-a-shopping-de-guarulhos.shtml

Não

O silêncio da sua ausência parece tomar conta. O ensurdecedor som da sua não chegada, as notificações dos seus não emails, a procura pelo seu tato sem sucesso. Você some na multidão por entre pessoas que sequer conheço, vive uma vida da qual não faço parte. Faz parte. Mas o que dói é o não você. É o excesso da falta, é o não saber.

Descompensada, caminho até os lugares por onde passamos. Todos imaginários, talvez. Ando e circulo por eles, buscado pistas suas. Mas só encontro não pistas, não sinais. Me lembro de você me puxando com força pro seu colo, que logo em seguida se ausentou também.

O formato das mãos são parecidos, a minha e a sua. Mas só ficaram as não mãos. Segurei as suas quando você pediu. E dançamos. Agora só resta a não dança.

Tentei, em vão, te encontrar. Mas só resta o não encontro. O ar condicionado da sala desligado, o som da chuva lá fora e um desejo de não desejar. Em vão.

Me resta, então, sonhar com o dia em que a porta se abre. Por enquanto, só existe a fechadura. Espero como quem não se importa. Espero pelo vento, pelo suspirar do alívio. Pelo dia, talvez, em que sejamos mais sim do que não.