Criolo: Convoque Seu Buda

A metrópole e suas várias contradições são as temáticas centrais do novo disco do rapper Criolo

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Convoque Seu Buda estava entre as produções mais esperadas do ano, sem dúvida. Para quem curte rap, este foi um ano memorável, inclusive. Entre tantas pérolas aguardadas, o terceiro disco de Criolo estava entre as principais. O disco já tem mais de 1 milhão e 300 mil visualizações (audições, talvez?) no YouTube, onde foi postado em 3 de novembro, data de seu lançamento oficial. Ao mesmo tempo o álbum foi disponibilizado para download no site oficial do artista.

Criolo é conhecido por não se “restringir” apenas ao rap em seus discos, transitando entre diversos outros estilos e gêneros musicais. Em Convoque Seu Buda não é diferente. Elementos que marcam a influência do maracatu, jongo, baião, rock, jazz, black music, reggea, samba, afrobeat, entre outros, estão presentes ao longo do trabalho. As referências, digamos, intelectuais, também chamam atenção com frequência no trabalho do Criolo. Nesse disco, aparecem Sabotage, Ferréz, Sartre, Nietzsche, Perrenoud, Black Alien, Piaget, Edi Rock, ufa, e ainda acho que esqueci de algum.

As letras, bem como a musicalidade, variam de temática, mas possuem marcas específicas. De cara, ouvindo o disco pela primeira vez, notei que o incômodo principal gira em torno das várias contradições da metrópole atual. A falta de moradia (“seu padeiro quer uma casa pra morar”), como uma das centrais, não aparece só de maneira explícita, mas também vai perpassando as faixas, quase de maneira pedagógica. Em Casa de Papelão, Criolo narra a vida nas ruas, fala sobre crack, especulação imobiliária e seu incômodo com a hipocrisia citadina torna-se latente em uma canção impecável. Com direito a um trecho de poema (cujo início já constava em Cerol, música antiga do cantor), os sopros dos arranjos dão a atmosfera dramática que a letra precisa pra ter seu efeito reflexivo, além de um toque meio afrobeat que faz lembrar o Nó Na Orelha.

Há quem diga que as críticas se destinam ao consumismo e à especulação imobiliária. Vou além. Ele fala sobre dinheiro, glamour e, de certa forma, pincela o que enxerga como hipocrisia. A inquietação diante da monetarização da vida (prédios vão se erguer/e o glamour vai colher/corpos na multidão) e de um estilo de vida que pode nos levar ao fim são claras na sequência que se monta em Esquiva da Esgrima (onde o maracatu dá as caras), Cartão de Visita e a já citada Casa de Papelão. O ar meio blues, meio jazz, meio anos 1980 geraram, ao menos pra mim, um tom de deboche em Cartão de Visita. O backing vocal impecável de Tulipa Ruiz, somado ao refrão que vai direto ao ponto, além da incorporação da frase que virou meme (Lázaro, alguém nos ajude a entender) mostram uma das músicas mais bem produzidas do disco. “O sistema exige perfis de TV”, diz Cartão de Visita, lembrando sempre que é também a estrutura que nos fala, a ela falamos e somos também falados.

Um pouco de afrobeat, um tanto de influência nordestina e uns pifes marcam Pegue Pra Ela, a canção que está entre as que mais me intriga no disco. A meu ver, uma união entre a anunciação de uma nova era que não se descola de uma análise (marxista) do meio social. Criolo fala sobre meios de produção e de como a lógica capitalista afeta a cultura. Há que o chame de adorniano, mas pra mim, ele faz aí um tratado sobre cultura de dar inveja a Tom Zé.

Ativismo(s) e a diferença entre a luta nas ruas (“eu que odeio tumulto/não acho insulto manifestação”) e a ilusão de que se vai mudar o mundo sem ação coletiva ou organização política (“mudar o mundo do sofá da sala/postar no insta”) também dão o tom. No clima pós junho de 2013, o cantor também fala sobre a tensão das manifestações que se espalharam pelo país, invocando uma certa espiritualidade, valores como a não-violência e a justiça, mas também alertando para as ações diretas (“mandaram avisar que vão torrar o Centro”) na faixa que dá título ao álbum.

Duas faixas não me chamaram atenção de cara: Plano de Voo e Pé de Breque. A primeira, um rap pesado que nos lembra dos primórdios de sua carreira, começa com frases simples e diretas, mas termina com uma letra sofisticada e bastante sensível. A participação do Síntese acrescenta uma firmeza à letra que, ao mesmo tempo, nos convoca a pensar (a vida é ritual/ parte no meio do mundo a sós num laudo intenso) e agir (desato o nó da trama/ enterro a discórdia no abraço/ rebato os peito de bronze / por trás das barras de aço).

Fermento pra Massa é mais uma daquelas narrativas urbanas que me fizeram pensar que, de fato, o disco fala sobre as vivências na cidade. Um sambinha cheio de cadência sobre um dia de greve dos transportes em São Paulo criam uma história cheia de reflexões e contestações que vão dos transportes, passam pela moradia, corrupção e a fome. A letra é muito bem construída, trata de quase todos os temas presentes no disco como um todo (moradia, cidade, transporte, ativismo social, política), embora o arranjo deixe a desejar. Outra marca do Criolo está em Fermento pra Massa, “farinha e cachaça” pode ser tanto a farinha que se usa pra fazer pão quanto a farinha que se compra na biqueira.

Confesso que não compreendi muito bem o motivo que levou à inclusão de Duas de Cinco. Cóccix-ência, do mesmo EP, ficou de fora. Mas o disco não poderia terminar melhor. O ponto de umbanda unido à voz de Juçara Marçal que, a meu ver, poderia se tornar patrimônio imaterial, são mais um chamado à espiritualidade. “Abra caminho tranquilo pra eu passar” pede Juçara, combinado à convocação de Buda, que abre o disco, mostram a intenção do artista em começar e terminar de maneira coerente. Cheia de frases de proteção e coragem, a faixa merece destaque.

Ah, e pra quem achou que era o Criolo na capa do disco, não é, não. É uma colagem feita pelo Denis Cisma e pelo Lucas Rampazzo a partir de uma imagem (entre tantas) liberada pelo Rijksmuseum, de Amsterdã. Com referências de vários tipos, a arte foi criada começando pela imagem de um oficial da corte da ilha de Java, de 1820, usando sarongue (esse vestidinho aí).

Este trabalho é um chamado à paz. Mas não a uma paz cínica, para poucos. A paz com justiça, para a qual Criolo nos chama, envolve justiça social e muita, muita luta. E algo bom precisa sair de cada um de nós. Essa é a mensagem de Convoque Seu Buda.

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Alguns destaques:

Cartão de Visita é um deboche completo. Ela me lembra, em algum ponto, Freguês da Meia Noite, em que Criolo utiliza um bolero romântico pra narrar uma história sobre drogas e prostituição, brincando com o clichê do gênero. Cartão de Visita não é apenas uma crítica ao consumo desenfreado na sociedade, mas é isso também. Não é apenas um deboche com o estilo de vida de determinadas classes, mas também é. E não é apenas um soul-jazz-meio-hip-hop-anos-80, mas também é.

Criolo fala sobre dinheiro, posse, glamour, hipocrisia, estilo de vida, monetarização da vida, empatia (ou a falta dela). E o deboche começa logo de cara; quando ouço os primeiros “acordes” (que são, na verdade, trechos de músicas) imagino pessoas trocando as estações de rádio numa limousine a caminho de uma festa numa esquina badalada do Rio ou de São Paulo. Em seguida, uma série de artigos de luxo é listada sem pudor, com uma voz trabalhada pra soar arrogante. Os artigos de luxo citados compõem o cenário de uma festa digna de cobertura de paparazzi e quem narra parece ser o promoter. E é aqui que reside, a meu ver, o segundo grande deboche da música e que me lembra muito Bourdieu. Ele fala em itens luxuosos e, no final, pede desculpas se não se apresentou “este é meu cartão, trabalho no buffet”. Ou seja, o arrogante organizador da festa de luxo é um trabalhador, exemplo que poderia ser usado pra ilustrar Gostos de classe e estilos de vida, de Pierre Bourdieu. O consumo de luxo e de marcas consideradas de classe A, para continuar distinguindo as classes sociais, precisa ser exclusivo. Nas palavras de Bourdieu: “Os gostos obedecem, assim, a uma espécie de lei de Engels generalizada: a cada nível de distribuição, o que é raro e constitui um luxo inacessível ou uma fantasia absurda para os ocupantes do nível anterior ou inferior, torna-se banal ou comum, e se encontra relegado à ordem do necessário, do evidente, pelo aparecimento de novos consumos, mais raros e, portanto, mais distintivos” (BOURDIEU, 1976).

Basicamente, o que vale frisar, nesse caso, é a construção do habitus de classe média (o narrador) que tende a se identificar com os valores das classes mais altas (o público da festa em questão).

E os artigos de luxo listados servem como forma de distinção não só para os que vão à festa organizada pelo cara que trabalha no buffet, mas também a ele próprio. Mas não é apenas da distinção via consumo que Criolo fala. “O sistema exige perfis de TV”, me faz lembrar é também a estrutura que nos fala, a ela falamos e somos também falados. Ora, os perfis de TV devem estar na festa e, para isso, o glamour e a presença de VIPs (“MC Lon tá portando VIP / Tássia tem um blog de fina estirpe”) é essencial.

No entanto, as críticas se dão também no âmbito individual, não apenas à estrutura. Quando Criolo diz “Acha que tá mamão, tá bom, tá uma festa / Menino no farol cê humilha e detesta”, é óbvio que fala sobre a estrutura que cria essa desigualdade, mas também chama atenção a um certo comportamento de classe, ao habitus dessa tal tribo descolada que se reúne pra discutir “cotas, copas e afins” mas não olha ao redor, porque “tá uma festa”. Outro grande deboche está também no refrão “parcela no cartão essa gente indigesta” é uma indireta-direta a esta classe média a quem Criolo direciona toda a ironia da música. A mesma classe que “parcela no cartão” todo o glamour do qual desfruta, enxerga uma classe bem mais próxima da sua como “essa gente indigesta” a ser alvo apenas de caridade – ou nem isso.

Ao final do refrão, um sampler dos Racionais me chamou atenção. “Nem tudo que brilha é relíquia nem joia”, trecho de “Artigo 157”, casa muito bem com Cartão de Visita, demonstrando as referências do músico.

Mais um deboche se segue quando o mesmo classe média arrogante diz que “a ignorância só cresce”, ou mesmo antes quando ele diz que quer “dar um clima cult” oferecendo “de brinde ímãs de geladeira com Sartre e Nietzche”. Criolo marca aqui um ponto central em suas discussões sociais, sempre lembrando que, por mais bem intencionados que sejam os “acostumados com sucrilhos no prato”, há sempre um lugar de classe bem demarcado.

Pegue pra Ela começa com baixos bem marcados, percussão leve. Os pifes marcam o que se anuncia em seguida. Um pouco de afrobeat, um tanto de influência nordestina, remetendo a um xaxado latente, lembrando um pouco o baião. A canção Pegue Pra Ela que está entre as que mais me intriga no disco. A meu ver, ela une com maestria a anunciação de uma nova era e uma análise crítica intensa do meio social. Criolo fala sobre meios de produção e de como a lógica capitalista afeta a cultura. Há que o chame de adorniano, mas pra mim, ele faz aí um tratado sobre cultura bastante elaborado e completo.

Já diria Stuart Hall: tenho quase tanta dificuldade com ‘popular’ quanto tenho com ‘cultura’, quando colocamos os dois termos juntos, as dificuldades podem se tornar tremendas. É disso que se trata Pegue Pra Ela. Por um lado, para muitos marxistas, a luta de classes por si só explicaria todo e qualquer processo, reduzindo a cultura a um simples reflexo da base econômica, incapaz de influenciar nas dinâmicas social, econômica e política. Do outro lado estão os chamados culturalistas, para os quais a cultura é que seria determinante. Segundo esta visão, muitos problemas contemporâneos resultantes de diversos fatores (históricos, culturais, sociais, econômicos etc.) se justificam somente pela cultura. Ambas as concepções apresentam problemas. Uma por admitir que a cultura estaria acima das determinações materiais da sociedade e, portanto, em um estágio superior, de “elevação” do ser humano; a outra por enxergar a cultura como campo secundário da vida. Criolo parece não se prender a nenhuma dessas concepções, mas sim se aproximar da perspectiva dos estudos culturais, na qual a noção de que a cultura fala mais sobre as disputas e os processos de transformação para os quais a cultura é ambiente fértil.

Acredito que esta música é uma análise sobre cultura porque ela dá conta de um universo de complexidades que estão em jogo quando se discute cultura. Digo isso porque ele de cara já enquadra sua análise na perspectiva dialética marxista “Toda indústria tem no comércio / Seu ponto de reprodução / Então, se pra cada ponto, processo / E cada processo uma ação”. Ele reconhece que tudo é processo e que cada processo gera uma ação (e ao mesmo tempo é uma ação), o que pra mim remete, em certo sentido, a uma perspectiva de resistência mesmo. Criolo está resumindo o modo de produção capitalista e, ao mesmo tempo, apontando um horizonte dialético em que reforça que “pra cada ponto, processo e cada processo uma ação”. Logo de cara, ele anuncia “essa nossa canção” e pede para que “conte pra ela dessa nova estação”, o que me fez pensar muito nas iniciativas culturais independentes e nas novidades que esses coletivos de arte significam. Como militante, entendo a “nossa canção” como uma forma de indicar uma ação coletiva e a “nova estação” como realmente uma nova forma de se produzir cultura ou mesmo de resistir à cultura como espetáculo/comércio.

Em seguida, Criolo utiliza a mesma linha de raciocínio pra falar sobre cultura “Toda cultura vira comércio / É o ponto de degradação / Então, se pra cada ponto, processo / E cada processo uma ação”. Nesse sentido, ele está dizendo, pra mim, que a cultura se adapta ao modo de produção capitalista, sem dúvida. Mas reconhecendo, mais uma vez, o processo e a ação. Enxergo que ele questiona sim a possibilidade de “degradação” da cultura quando esta vira comércio, no entanto, ele repete que lá está o processo e a ação, seja pra resistirmos a esta degradação, seja pra denunciarmos, seja pra escolhermos degradar (conter) pra depois resistir.

Por isso nem de longe enxergo como uma análise adorniana, já que outra estrofe que se repete é “Pra cada toco dentro do eixo / Quebra queixo dessa questão”, que pra mim remete a quem decide disputar (ideológica e esteticamente) a cultura de massas, ou ser o “toco dentro do eixo” que “quebra” o que está até então estabelecida. E “Pra cada louco fora do eixo / Quebra queixo dessa questão”, continuação da mesma estrofe, a meu ver é um embaralhamento do sentido de “fora do eixo”. Ele ao mesmo tempo está falando de quem decidiu resistir à indústria cultural ao invés de disputá-la e de como isso pode ser ambíguo, já que remete ao próprio Fora do Eixo (o coletivo). É complexo, o artista está o tempo todo reconhecendo isso, falando sobre todas as contradições, ambiguidades e complexidades de se fazer as duas coisas – disputar “por dentro” e “por fora”.

Além disso, ao mesmo tempo em que o rapper localiza a cultura dentro do espectro da produção capitalista, quando ele diz que “Essa nave já vai partir / E carrega uma multidão”, penso que ele fala sobre uma certa insatisfação coletiva que diz respeito não somente ao sistema econômico, mas também a tudo que está ao nosso entorno: a cidade (temática central do disco), a cultura, o trabalho, o consumo, o espetáculo (que prioriza sempre a noção de que na cultura há a eterna divisão entre espectadores e produtores). Pra mim, a nave é a novidade, a anunciação, como se as pessoas estivessem finalmente se organizando em multidões insatisfeitas e que querem “convocar seu buda” pra transformar o mundo através também da cultura. É claro que, novamente, ele aponta que existe o tal “eixo” em que ou se está dentro, ou se está fora, mas o horizonte da resistência se apresenta, enfim.

Em relação à questão estética, não acredito que seja por acaso a influência nordestina na produção de Pegue Pra Ela. Até o sotaque do cantor muda pra entoar a letra com mais vigor, o R de “partir”, o E de “questão” (que vira quéstão) e o O de “reprodução” (que vira répródução), entre outros detalhes, que também fazem referência a outra música do disco, Esquiva da Esgrima (“é que eu sou fi de cearense, a caatinga castiga e meu povo tem sangue quente”). Creio que essa quantidade de referências ao nordeste não diz respeito apenas às origens de Criolo, mas também ao seu desejo de mostrar a diversidade cultural da região e trazer isso como um elemento constitutivo da cidade grande atual. A forte presença nordestina, principalmente em São Paulo, precisa ser valorizada também pela bagagem cultural do povo migrante, e não apenas pelo suor de seus rostos. Criolo ajuda a ressignificar tudo isso nesta obra prima chamada Pegue Pra Ela.

Este texto é uma versão mais longa do que foi inicialmente publicado no Outra Página.

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