Uma vez eu pensei sobre o espaço dos homens na sociedade e sobre como eles devem atuar em prol do feminismo nesses espaços, sem dizer como as mulheres devem se comportar. Eu já pensei tanto sobre isso. E quando escrevi um texto com reflexões iniciais estava pensando mais sobre o tanto de vezes que já ouvi de homens que eu “deveria aprender a debater”, em tom professoral mesmo. E eu fiquei puta. Mas fiquei puta porque eu acho que a luta política não funciona assim, reproduzindo postura patriarcal, saca? Eu acho que é mais sobre trazer colaborações e focar na transformação dos espaços que são considerados como “lugar de homem e não de mulher”. Só que eu também não acho que a luta política funcione se a gente disser que esse cara não pode defender as nossas pautas, principalmente nos espaços de poder. Que são majoritariamente deles. E aí eu comecei a refletir sobre se o que eu disse não estava envergado para um lado que considero equivocado. O que eu disse foi até usado dessa forma, porque eu digo lá que os homens têm dificuldade em reconhecer seus privilégios. E têm mesmo, todo privilegiado tem. Mas eu tô reconhecendo aqui que talvez eu tenha contribuído pra (ou contemporizado com a) reprodução de uma interpretação errada da noção de protagonismo.
Eu tenho certeza que protagonismo feminino é importante e não abro mão dele. Mas a gente precisa discutir o que é esse protagonismo. Urgente, sério. Eu continuo achando que as mulheres precisam decidir os rumos do movimento feminista. O que eu não acho é que decidir os rumos do movimento (e a auto organização) seja a mesma coisa que discutir políticas pras mulheres ou mesmo as nossas causas. Continuo achando terrível que um homem diga como o movimento feminista deve ou não se comportar, porque isso é reprodução da velha máxima patriarcal de como as mulheres em geral devem se comportar. Já aconteceu comigo, já aconteceu com quase todas as feministas que conheço, porque acontece com todas as mulheres. Só que “senta direito”, “isso não é coisa de mulher”, “não fale palavrão”, “não mostre os peitos ou a calcinha” não é a mesma coisa que “eu sou a favor da legalização do aborto, quero contribuir com a causa”, “parto humanizado já”, “vamos acabar com a cultura do estupro”. E é por isso que eu acho que protagonismo não é a mesma coisa que lugar de fala. E alguns setores do feminismo confundem, sim. Ou manipulam de acordo com o que acreditam ser o melhor para o movimento.
Sobre protagonismo
Porque eu acho que tirar protagonismo é quando você pega um espaço que seria de uma mulher, que ela usaria pra defender uma pauta feminista, e se utiliza pra outra coisa, pra se autopromover, pra debochar, pra desqualificar, silenciar. Isso rola, sim. Mas não sempre. E não em todos os casos. Porque um homem teve espaço pra falar sobre uma pauta feminista, e falou, e defendeu (como já havia feito antes, inclusive) uma pauta que é nossa, sim. E o cara disse que espera que um dia “vamos achar a proibição do aborto um absurdo, assim como achamos um absurdo a escravidão ou o holocausto”. Isso é reconhecer que mulheres morrem todos os dias por causa de aborto inseguro e proibido. Que nos escraviza, que domina nossos corpos. E tem o Freixo que fez não um, mas dois projetos de lei sobre isso, um inclusive pra barrar o estatuto do nascituro. E eu fico pensando se quem diz que isso é “roubar protagonismo” tem noção do ônus político que o Marcelo Freixo bancou com essa postura, como outros já bancaram antes, e se foderam.
E a gente tá acostumada a ver os homens (e as mulheres também, oras) deslegitimando o feminismo o tempo todo. E aí, por conquista totalmente nossa, a gente consegue fazer com que algumas pessoas passem a ver o feminismo de maneira positiva. A gente ressignificou o sentido de ser feminista, ao menos em algumas camadas da sociedade. E aí, quando a Valesca Popozuda fala que é feminista (e algumas feministas debocham, desautorizam), várias mulheres passam a ver o feminismo com outro olhar. E isso acontece também quando um homem defende as nossas pautas. Sei lá, eu vejo isso como vitória. Quando um cara com um prestígio gigante na mídia pega esse espaço que já seria dele, de qualquer forma, e usa pra “dar visibilidade” a um discurso que não necessariamente seria publicado ali, isso deve ser considerado.
Ok, não é ideal que um homem tenha mais credibilidade que nós pra falar sobre um assunto que só vive quem tem útero, como no caso da legalização do aborto, por exemplo (destacando a ressalva que há pessoas com útero que não podem engravidar ou que não mantêm relações em que a gravidez seja uma possibilidade). O melhor seria mesmo uma mulher cis falar. Ou, em alguns casos, assuntos, espaços, uma mulher trans. E elas deveriam ser ouvidas da mesma forma, com o mesmo prestígio, em igualdade. Mas infelizmente não temos tanto espaço assim. E eu fico pensando que a melhor forma de conquistar esse espaço é continuar construindo política, é lutar por representação, é desconstruir estereótipos. Mas eu não acho que a melhor forma de reclamar por espaço seja dizendo “não temos a mesma credibilidade que você, homem, então você também não pode falar”. Acho que seria mais no sentido de “ele está falando, nós concordamos e acrescentamos que gostaríamos de ter esse mesmo espaço pra falar”. Sei lá, eu acho. E acho que não dá mais pra trabalhar com a lógica do “quanto pior, melhor”. A gente tem que garantir conquistas pra ontem. E a gente só tem 10% do parlamento. Então como a gente faz isso? É dizendo que os homens não podem ajudar a construir as nossas conquistas? Ou é dizendo “ei, você tá aí no parlamento, na mídia, nos espaços de poder, você tem obrigação de abrir esse mesmo espaço pra gente ao mesmo tempo que nos garante conquistas”? Sei lá, eu acho.
Sobre lugar de fala
Protagonismo e lugar de fala são coisas diferentes. E recentemente percebi que minha concepção sobre “lugar de fala” é totalmente diferente da que vejo em parte do movimento feminista. Pensei muito sobre isso e notei que alguns debates são simplesmente inviabilizados por essa problemática. A articulação entre alguns elementos podem ajudar a definir isso que eu tô chamando de lugar de fala. O agente em si, a posição social (raça, classe, gênero, orientação sexual etc.), e o tal do capital simbólico formam o lugar de fala de todo mundo, que se se confronta ou se alinha com outros lugares de fala ao redor. Não se trata de uma redução a um lugar sociológico, apenas, do falante, mas reconhecer que é algo que contém além da sua posição no mundo uma certa concretude que a contextualiza e envolve. O Michel Pêcheux vai falar que “’as palavras mudam de sentido segundo as posições daqueles que as empregam”. É uma relação complexa entre o plano social onde se insere o sujeito e o ato de falar. E isso com todos os conflitos, com as posições e relações de poder inerentes, com os reconhecimentos, as identidades, as representações. Assim, o lugar de fala é mais sobre como a gente analisa o que o sujeito tá falando, a partir de todos esses elementos aí, do que sobre uma posição privilegiada ou mesmo sobre algo que te autorize necessariamente a falar. O lugar de fala identifica o sujeito, mas não o interdita ou legitima, a priori.
Essa expressão se refere, então, ao posicionamento do sujeito ao falar sobre determinada temática. Dessa forma, quando vou falar sobre aborto, meu lugar de fala é explícito: uma mulher cis falando sobre algo que poderia com certeza acontecer com ela. Quando um negro ou uma negra falam sobre racismo, o lugar de fala é também explícito. No entanto, quando um homem heterossexual fala sobre lesbofobia, por exemplo, esse lugar de fala precisa ser explicitado, na minha opinião. Explicitar o lugar de fala não quer dizer desautorizar, “silenciar” (complicado isso quando o indivíduo em questão é privilegiado, inclusive) ou mesmo desqualificar o enunciador que não “vive na pele” aquilo sobre o que opina. Não se “rouba” lugar de fala, tendo em vista que ele faz parte da condição inerente à posição do sujeito que enuncia.
Pra mim, repensar a interpretação dos conceitos de lugar de fala e protagonismo envolve um desejo de fazer da luta política uma ação real e não uma reflexão ilusória, longe do concreto. Porque mesmo dentro do movimento feminista a noção de protagonismo não é consensual. E se você for conversar com algumas feministas negras, com as trans e com as gordas vai perceber isso de cara. Porque é preciso saber se a noção de protagonismo que se encampa hoje não é mais sobre um diálogo que anda em círculos (ou sequer anda) com a ilusão de que se está fazendo política do que sobre realmente enfrentar o mundo concreto. E aí a gente tem que discutir se prefere ter razão falando só pra nós mesmas, por acreditar que só nós podemos falar. Ou se prefere fazer política.
Eu sou mulher. Cis. Branca. Fiz universidade pública. Estou no doutorado. Eu sou feminista e já faz algum tempo que tô nessa batalha. Mas isso não significa que, mesmo dentro do movimento, eu serei sempre ouvida e respeitada. Porque se eu defender as mulheres trans do ataque transfóbico de vários grupos (inclusive feministas), eu vou ser esculhambada por alguns setores do feminismo. Porque se eu for antipunitivista eu vou ser acusada de defender agressor. Se eu for abolicionista penal, serei apontada como defensora de assassino, acusada de colocar vidas de mulheres em risco. Porque se eu concordar com um homem em um debate, eu sou a “feminista que os homens gostam”. Se eu defender as putas, eu sou a voz do patriarcado. E tudo isso já aconteceu comigo. E eu sou mulher. Então fico pensando se realmente as coisas são sempre sobre auto organização, sobre “protagonismo”. Ou sobre um certo medo da dissonância. Ou sobre a específica premissa de uma coalizão ilusória, em que a diferença é ameaça. Sei lá.